1. Machado de Assis - e a incompetência
Machado de Assis escreveu crônicas, sem se identificar como autor, entre abril de 1892 a fevereiro de 1897, no jornal Gazeta de Notícias em uma seção : A Semana. O autor comenta os fatos registrados nos jornais das semanas anteriores com observações sobre a sociedade, comparando o Brasil e brasileiros com o mundo, em uma linguagem irônica e utilizando-se dos clássicos. Observa-se sempre o inconformismo e denúncia que, à ´época, só poderia ser feita por "meias palavras", usando a paródia e ironia. Na crônica de 26 de junho de 1896, utiliza um anúncio para denunciar um caso de morte uma criança no hospital por falta de cuidados de enfermagem. Critica o desrespeito do Estado com o povo que arquiva as queixas sem punir os culpados.
26 de julho de 1896
A semana (Gazeta de notícias)
A semana (Gazeta de notícias)
Apaguemos a lanterna de Diógenes [1]; achei um homem. Não é príncipe, nem eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não escreveu um belo livro, não descobriu nenhuma lei científica. Também não fundou a efêmera república do Loreto, e conseguintemente não fugiu com a caixa, como disse o telégrafo acerca de um dos rebeldes, logo que a província se submeteu às autoridades legais do Peru [2]. O ato da rebeldia não foi sequer heroico, e a levada da caixa não tem merecimento, é a simples necessidade de um viático. O pão do exílio é amargo e duro; força é barrá-lo com manteiga [3]. Não, o homem que achei, não é nada disso. É um barbeiro, mas tal barbeiro que, sendo barbeiro não é exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia; o estilo ressente-se da exaltação da minha alma [4]. Achei um homem. Se aquele cínico Diógenes pode ouvir, do lugar onde está, as vozes cá de cima, deve cobrir-se de vergonha e tristeza; achei um homem. E importa notar que não andei atrás dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas, quando um pequenino anúncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais rápido que o raio até o papel [5]. Então li isto: “Vende-se uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto é bom e o capital diminuto; o dono vende por não entender...” Eis aí o homem. Não lhe ponho o nome, por não vir no anúncio, mas a própria falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre confissão de ignorância é um modelo único de lealdade, de veracidade, de humanidade. Não penseis que vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras do anúncio) por estar rico, para
ir passear à Europa, ou por qualquer outro motivo que à vista se dirá, como é uso escrever em convites destes. Não, senhor; vendo a minha loja de barbeiro por não entender do ofício [6]. Parecia-me fácil, a princípio: sabão, uma navalha, uma cara, cuidei que não era preciso mais escola que o uso, e foi a minha ilusão, a minha grande ilusão. Vivi nela barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém, reconheço que não sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei, faz-me enfim recuar [7]. Basta, Carvalho (este nome é necessário à prosopopeia), basta, Carvalho! É tempo de abandonar o que não sabes. Que outros mais capazes tomem a tua freguesia [8]. A grandeza deste homem (escusado é dizê-lo) está em ser único. Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o merecimento seria pouco ou nenhum. Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos. Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, [9] a vir dizer chãmente que não entendem do ofício. Esse ato seria a retificação da sociedade. Um mau barbeiro pode dar um bom guarda-livros, um excelente piloto, um banqueiro, um magistrado, um químico, um teólogo. Cada homem seria assim devolvido ao lugar próprio e determinado [10]. Nem por sombras ligo esta retificação dos empregos ao fato do envenenamento das duas crianças pelo remédio dado na Santa Casa de Misericórdia [11]. Um engano não prova nada; e se alguns farmacêuticos, autores de iguais trocas, têm continuando a lutuosa faina, não há razão para que a Santa Casa entregue a outras pessoas a distribuição dos seus medicamentos, tanto mais que pessoas atuais os não preparam, e, no caso ocorrente, o preparado estava certo: a culpa foi das duas mães. A queixa dada pela mãe da defunta terá o destino desta [12], menos as pobres flores que Olívia [13] houver arranjado para a sepultura da vítima. Também há Céu para as queixas e para os inquéritos. O esquecimento público é o responso contínuo que pede o eterno descanso para todas as folhas de papel despendidas com tais atos [14]. |
Notas
[1] Diógenes de Sinope filosofo grego (~404-323 Antes de Cristo), conhecido por iluminar com uma lanterna o rosto das pessoas dizendo: estou à procura de um homem honesto em Atenas. saiba mais. [2] Em junho de 1896 parte da região da amazônia peruana emancipou-se do governo de Lima, criando um novo país entre o Brasil e o Peru. O Presidente brasileiro Prudente de Moraes declara apoio ao governo peruano. A rebelião tem pouca importância na historia do Peru, entretanto, por ser na região amazônica fronteira, teve repercussão no Brasil. [3] O pão do exílio é amargo - evoca Shakespeare, Richard II Ato 3, Cena 1.. À época a manteiga é muito mais cara que o pão e Machado utiliza na divisão da herança, Cotrim deseja a manteiga e não somente o pão. - Memórias Póstumas de Brás Cubas cap. 46. [4] A repetição da palavra "barbeiro" cria um vício de linguagem, a logomaquia, um palavreado repetitivo sem sentido. No caso como se verá a repetição faz sentido. [5] .Um dos objetivos da cronica semanal é comentar matérias de jornal das semanas anteriores. No caso o autor limita-se a realçar a importância de um simples anúncio. [6] O inusitado no anúncio é o vendedor se considerar incompetente para gerenciar um pequeno negócio, a barbearia. [7] O cronista coloca-se na pessoa no anunciante e descreve como provavelmente ele poderia refletir sobre a tarefa. [8] Prosopopeia é utilizado no sentido de dar um nome "Carvalho" à um anunciante genérico que omitiu o próprio nome, embora antes o cronista afirmava "não lhe ponho o nome". [9] Como vemos abaixo não é casual que o cronista tenha associado "o farmacêutico" estar a "cavar covas", ou seja o farmacêutico é um coveiro. [10] A sociedade ideal proposta pelo cronista seria aquela em que os profissionais teriam competência e aptidão para o exercício da profissão. Os incompetentes e inaptos não exerceriam cargos para aos quais não estão preparados. [11] Eis a chave da cronica. A denúncia da morte de duas crianças a partir de um erro de um farmacêutico. À época o jornalista estava inibido em denunciar uma falha grave na Santa Casa. Porém o protesto do autor foi descrito usando um comentário irônico a partir de um simples anúncio. [12] O destino do jornal impresso será o uso para embrulho. O autor está ciente de que sua indignação e a queixa da mãe são esforços inúteis. Os culpados não serão julgados, ou mesmo afastados da função que exerceram de modo criminoso, matando duas crianças inocentes por terem tomado remédio manipulado sem cuidados pelo farmacêutico. [13] Olívia talvez seja o nome de uma das mães. [14] O autor tem consciência que o seu protesto e as queixas das mães serão papéis inúteis, o jornal como papel de embrulho não será guardado e o inquérito será um papel que terá o esquecimento assim como as vítimas de um crime sem punição. |